Tenho
que aprender o desapego, ah tenho sim. Confesso que não passei do primeiro
estágio. Quando vou fazer uma viagenzinha bobinha de passar uma noite fora, lá
estou preocupada com cremes e batons que nem uso mais, com medicamentos,
suplementos e mais alguma coisa. Mas o que me pega de verdade é a minha
“preocupação” com algo que possa me fazer falta. E como padeço de toc, confiro
mais de uma vez se está tudo lá.
E
sempre me lembro do delicioso romance de Eça de Queiroz, “A Cidade e as Serras”:
Jacinto, moço rico, nascido praticamente num palácio,
tinha ao seu dispor todos os confortos e mordomias que a modernidade do século
XIX podia oferecer, como máquina de escrever, telégrafo Morse, fonógrafo,
telefone. Bom, o moço tinha tudo - uma biblioteca com 1817 volumes só de
sistemas filosóficos, sem falar nos compêndios sobre astrologia, medicina e
outros tantos. Tinha uma escova chata e redonda para aparar o cabelo no alto,
uma escova estreita para ondear o cabelo sobre a orelha, outra côncava para a
parte de trás da cabeça, outra de longas cerdas para o bigode e ainda outra
mais leve para as sobrancelhas. Acontece que o Jacinto não era feliz. Trazia
uma insatisfação sem remédio dentro do peito, o que o fazia bocejar a todo
instante, e a despeito de três cozinheiros experimentados nos melhores
cardápios ricos de todas as proteínas, tinha a face pálida e rugas de
preocupação.
Em busca de novos ares, Jacinto decidiu passar uma temporada nas
serras, em uma quinta cuidada por caseiros havia trinta anos. Por precaução,
sabendo ele que a construção estava desgastada pelo tempo, enviou uma equipe de
engenheiros, arquitetos, trabalhadores e malas e mais malas com todos os
confortos necessários para duas semanas de montanha, como camas de penas,
poltronas, divãs, banheiras, tapetes persas, livros, vinhos, champanhe, e mais
muitas outras coisas. Ocorre que por um lamentável ou providencial erro de
comunicação e extravio das malas cheias de modernidades, Jacinto chegou à quinta
com a roupa do corpo, e desolado, deu com a casa de janelas sem vidraças, com
paredes enegrecidas, buracos no telhado e apenas enxergas no chão. O caseiro Zé
Brás, apavorado, atravessando a pior hora de sua vida e com as mãos na cabeça,
tratou de providenciar uma ceia para o patrão. Ordenou a um bando de mulheres
experientes que logo “depenava frangos, batia ovos e escarolava arroz, com
santo fervor”, no dizer da narração sarcástica e adorável de Eça de Queiroz.
Nada restou a Jacinto senão esperar pela ceia, encostado na janela sem vidraça,
de olho nu nas estrelas que luziam no céu negro da serra. Acabou por considerar
que a teoria dos seus compêndios sobre astros era bem diferente da prática real
da observação. Inebriado por uma doce paz que vinha do crepúsculo, foi cear e
se descobriu com uma fome leonina. Devorou os frangos, os caldos e as favas,
sem se lembrar de que não gostava delas. E o vinho! Ah sim, o vinho! Caseiro,
de mesa, simples, saboroso. Enfim, depois de algum tempo, encontramos um Jacinto
bem diferente daquele da cidade civilizada. Perdera a palidez, ganhando um tom
trigueiro e forte. Pescava trutas que ele mesmo assava, e estava de casamento
marcado com uma rapariga bela e forte do lugar.
Tudo
ficção e exagerado para fazer a gente rir um pouco. Mas verdade seja dita: não
precisamos de 99,9% das coisas que julgamos precisar. Saindo da Literatura para
palestras de Dom Henrique Soares que minha irmã Agueda sempre me envia e muitas
vezes não assisto pelo tempo que me falta, assisti a uma hoje que amei: “Pouco
é necessário para quem Deus é tudo”. Em determinado ponto ele conta um fato que
preciso repassar: ele estava em Roma na época quando um vizinho de quarto
relatou que tinha ido celebrar missa numa capela cuidada pelas Irmãzinhas de
Santa Teresa. Na saída, a Madre pediu que ele desse carona até o Metrô para uma
irmãzinha que havia sido transferida para outro lugar. E eles ficaram
conversando até que o padre perguntou para a irmãzinha: e aí, você não vai
buscar a mala? E ela disse que já estava com tudo. O tudo não passava de uma
bolsa de pano a tiracolo. Ela ia se mudar e tudo o que possuía estava naquela
bolsa. Meus olhos transbordaram formando um vale de lágrimas ao ouvir essa
parte. Lá vou eu sentindo minha santa inveja dos santos. D. Henrique diz que a
pobreza cristã não é por ideologia, mas para dar espaço para Cristo no nosso
coração. E Sta. Teresa lembra que a verdadeira pobreza traz consigo uma honra
que não há quem lhe resista, mas ela ressalta que esta pobreza é aquela que é
abraçada só por Deus. Que beleza!
Não
é à toa que minha irmã diz: não precisa ver agora, MAS NÃO DEIXE DE VER, Misa,
OK? OK, respondo eu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário