domingo, 8 de novembro de 2015

Deus proverá


 


Minha mãe e meu tio pegaram o trem para ir para casa, lá em 1940 e alguma coisa. Cada qual encerrado em seu silêncio pensando na vida. Aí, antes que o trem partisse, entrou um homem vendendo cocadas, olha a cocadaaaaaaa, branquinha, quase quente ainda. Meu tio, moço novo, olhou para minha mãe com aquele ar de quem queria o doce. Ela comprou para ele e para ela também. Tem coisa mais gostosa? Mas eis que entra outro homem, alto, magro, com barba por fazer, com mãos sujas e pede uma esmola pelo amor de Deus. Minha mãe tira a bolsa, abre a carteira e entrega os últimos réis que possuía, como negar? Nessa altura, meu tio saboreava sua cocada sem pensar nas carências. Era moço, distraído com a vida.

Mais para a frente, já durante a viagem, ele diz para a minha mãe, você guardou dinheiro para pagar uma carroça para levar as malas, né? Minha mãe respondeu, não, dei os últimos réizinhos que tinha para esse homem que pediu. Meu tio ficou bravo, não compreendia como é que minha mãe pôde entregar o resto do dinheiro que tinham. Moravam longe da estação ferroviária, eram três malas pesadas e ele é que não carregava porque tinha um pouco de vergonha, era moço, bonito e vaidoso. Minha mãe disse, ora gente, o que é que eu podia fazer? Você quis o doce, eu ia negar pra você? Eu não contava com esse pobre homem que precisava também da esmola. Como é que eu ia negar se eu tinha? Eu ia dizer pra ele não tinha? Ora gente, eu tinha! Meu tio já estava enfurecido. Minha mãe só disse, Deus proverá, ao que meu tio ironizou, quero ver se Deus vai carregar as malas pra nós. Passaram o resto da viagem no mais completo silêncio. Meu tio, de cara feia e minha mãe pedindo a Deus que ajudasse, não para as malas que isso ela dava um jeito, mas para a fé do Paulo que era pouca.

Quando chegaram, antes mesmo que saíssem do trem, já tinham visto a namoradinha do meu tio que acenava na maior alegria, aparecendo de surpresa. Ele, arrasado, disse para minha mãe, e agora, ela vai ver que não temos dinheiro nem para pagar uma carroça, viu o que você fez? Minha mãe deu de ombros e saíram do trem. Depois de abraçá-los a mocinha disse, meu tio me trouxe de carro, onde estão as malas? Minha mãe sorriu ao ver aquele carro novinho, reluzente, último modelo da época. Acomodaram a bagagem no porta-malas. Antes de entrar no carro, minha mãe, disfarçadamente, acariciou a lataria, falando entre dentes, Deus, o senhor caprichou demais, não precisava tanto! Quanta gentileza e delicadeza de Sua Majestade! Já dentro do carro, ela disse baixinho para meu tio, Deus proverá ou não proverá? Homem de pouca fé! Ele fingiu que não ouviu e foi dar atenção para a namorada.  

Cinquenta anos mais tarde, acompanhei minha mãe à missa e na hora da consagração quando o povo diz, Senhor, eu creio, mas aumentai a minha fé, ouvi minha mãe dizendo quase em alto tom, Senhor, eu creio, mas aumentai a fé do Paulo!


 


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