segunda-feira, 11 de abril de 2016

Cura para depressão






Eu ainda era bem novinha quando acompanhei minha mãe numa cidade mais ou menos próxima onde atendia um médico diferente. Ele era um clínico geral, mas que ficara mais ou menos famoso por enxergar a alma das pessoas que o procuravam. E quem enxerga a alma, enxerga tudo porque as doenças não começam no corpo, surgem lá onde normalmente não se vê, apurando em fogo brando até que se derramam. Dizem que o corpo fala, ou seja, quando a dor física grita é porque o mal da alma incomodou tanto que saiu das profundezas que não vemos, mas existem.
Na sala de espera estavam diversas pessoas e entre elas uma mulher magrinha que enxugava os olhos a todo momento. Minha mãe logo entabulou conversa com os presentes, falava de onde vinha, ouvia as queixas dos outros e eu escutava tudo. Quando a mulher magrinha e triste foi chamada, todos pararam de falar, num respeito compassivo e solidário para acompanhar a entrada na sala do médico. Eu, para me distrair um pouco, saí para o jardim em busca de uma brincadeira, um passeio. Não sabia que brincava a poucos metros da janela da sala onde estava o médico atendendo. Escutei e nunca mais me esqueci.
A mulher mais chorava do que falava e o médico ia arrancando as palavras com toda a paciência, uma por uma, como se faz com pele de machucado quando tem que ser lavado e curado, pois tudo dói. Foi quando eu ouvi a pergunta que ele fez à paciente, qual foi o dia mais feliz da sua vida? Ela, com voz de choro, demorou um pouco, mas respondeu sem qualquer dúvida, o dia de meu casamento. Ele tornou a perguntar, e a senhora se lembra de tudo? Conta pra mim como foi.
No início a voz ainda parecia chorosa, depois as palavras foram se aprumando, se reunindo, já mais enxutas, e a mulher magrinha animou-se, discorrendo sobre o dia mais feliz de sua vida. Ela contou sobre as primas que vieram de fora dois dias antes da festa. A gente ficava conversando até tarde da noite sentada perto do fogão de lenha por causa do frio. Ali a gente morria de rir e como todas ainda eram moças solteiras e puras, o assunto é claro que era sobre a noite de núpcias, coisa que deixava todas nós nervosas. Na véspera mesmo eu tive que ir dormir mais cedo para estar bem no dia seguinte, mas só dormi depois de uma caneca de chá de erva-cidreira. O dia mesmo foi bom demais. Meu vestido estava dependurado na porta, que era bem alta para não ficar amassado. Todas elas me ajudaram a vestir e a Nicinha, que era a mais jeitosa, arrumou meu cabelo, passou um pó-de-arroz e um batom. Meu noivo já esperava na igreja e eu fui a pé mesmo, dando o braço pro meu pai. Todo mundo tava nas janelas. Foi tão bom, maravilhoso demais. A entrada na igreja foi a coisa mais bonita que já aconteceu comigo, deu um pouco de nervoso, é claro, mas eu dei conta. Depois foi a festa, o churrasco, o bolo de casamento que a dona Santa fez. Vivemos felizes, eu e o Zé Mauro por tantos anos, tivemos três meninos que hoje já são tudo casados, mas moram tão longe! Nem vejo bem os netos. O mais velho meu é a cara do pai. O Zé Mauro ficou doente no ano passado, era coisa grave, aquela doença ruim. Ele foi embora me deixando sozinha. Não parei mais de chorar. Já perdi pai, mãe, até a Nicinha também já morreu. Agora apareceu uma dor aqui do lado da costela e também uma dor de cabeça que não me deixa dormir. A vida é triste... Nesse ponto, sua voz tropeçou e eu ouvia apenas o fungar do nariz. O médico, paciente e bondoso, receitou pra ela alguma coisa, mas principalmente recomendou que ela se lembrasse da véspera e do dia do casamento. Disse que o tempo pra Deus é um só, que esses acontecimentos felizes não tinham passado, isto é, que tinham, tinham, mas que estavam vivos dentro dela e que sempre podiam ser vividos novamente.
Contei isso para minha irmã que não ficou convencida da eficácia do tratamento do médico, pois, segundo ela, lembrar dias felizes é abrir a ferida da saudade todos os dias, o que é bom mesmo é deixar purgar a dor, luto é luto. Mas, passados muitos anos, eu entendi que ela precisava falar para lembrar e viver de novo, o que não podia era ficar em silêncio. Sei que as palavras se aprumam e se aprontam sempre que convocadas e quando são proferidas, ajudam a curar. Não há depressão que resista ao poder das palavras.

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