segunda-feira, 4 de abril de 2016

Inocência perdida






            Era para ser um dia feliz! Tinha tudo para ser! A menina saiu de casa saltitante de alegria como era seu costume. De mãos dadas com a empregada, caminhava no calor gostoso do meio da tarde. Iam ao armazém do outro lado da pracinha para comprar açúcar e pó de café. A mãe ficara costurando ao lado do rádio e cantava, perdida em seus devaneios. A empregada tomara como séria obrigação ensinar a menina a assobiar. E naquele dia nada havia de mais importante no mundo do que essa tarefa. A menina juntava os lábios fazendo um biquinho, seguindo à risca tudo o que a empregada ensinava. O armazém era um pouco de tudo. Vendia mantimentos, agasalhos, botinas e também servia aguardente para os homens rudes, da cidade e do campo. A menina, curiosa, assistia a tudo, ávida por novidades. Os homens, já bêbados e quase inconscientes, falavam palavrões, gritavam, guinchavam. A menina, tímida, não tentara mais assobiar e se escondera atrás da empregada.
Mas naquela tarde, algo diferente acontecia. Todos gritavam alto, muito alto, e se amontoavam, se acotovelavam para assistir a um espetáculo dantesco – uma ratazana queimava encharcada de gasolina e acendida feito uma tocha viva! Ninguém queria perder o triste espetáculo, todos disputavam um lugar para melhor acompanhar a cena indecorosa e vil. Gritavam impropérios, batiam palmas e assobiavam forte como se estivessem em um estádio de futebol onde dois times brigavam pela melhor classificação. Sim, era como uma arena, daquelas em que as pessoas, contagiadas pelo delírio da turba furiosa, batiam palmas e berravam enquanto assistiam aos mártires serem estraçalhados e comidos vivos pelos leões famintos. A ratazana, atazanada de dor e ódio, guinchava mais alto que todos, rodopiava em piruetas fantásticas, procurando inutilmente fugir do fogo que, aos poucos, a consumia inteira.
A menina quedara estática, fechara os olhos e tremia, tremia toda, invadida por uma dor enorme, diante da cena absurda e cruel. Agarrava as mãos da empregada com toda a força e a puxava para ir embora, já chorando de medo, de raiva, de horror. Temia que a ratazana ou algum dos homens a alcançasse. Ela só queria assobiar, comprar açúcar e pó de café, ela só queria viver sua infância inocente, agora já maculada por aquele acontecimento ignominioso. A empregada, já mais maltratada pela vida e mais conhecedora das crueldades das pessoas, era movida a ficar, a compartilhar aquela loucura generalizada, sentia-se excitada e tomada pelo frenesi. É verdade que tinha pena da ratazana, mas não tinha sido sua culpa, já estava feito, só restava observar. Sabia que era errado, mas até sentia certo prazer com a cena, pura miséria humana.
A balbúrdia chegava ao auge! Os homens endemoninhados, qual fugidos do inferno sem destino e sem alma, davam vazão a todos seus instintos mais bestiais. Elevavam as garrafas de aguardente para o alto e as emborcavam na garganta, divertindo-se com a proeza. O líquido caía em suas faces com barbas hirsutas, derramava-se pelos cantos das bocas que eles escancaravam em gargalhadas indecentes, mostrando gengivas disformes e dentes podres. Quando não havia mais líquido algum, os demônios arremessavam as garrafas no bicho que, finalmente, já dava sinais de esgotamento em sua terrível agonia, diante de seu iminente fim. Já não guinchava mais, logo estava reduzida a um monte de carvão mal cheiroso. O brutal espetáculo terminara. Os homens loucos, decepcionados pelo fim de sua diversão pecaminosa, entraram no armazém.
A menina voltou chorando para casa, chorava alto, sentia uma dor incontrolável, um medo da vida. Correu para os braços da mãe, que ouvia, atônita o relato da empregada. Por muitas noites a menina teve pesadelos, sonhava com a ratazana em chamas, com os homens horrendos, com seus olhos injetados pelo sangue da bebida e do desvario. Depois de muito tempo, a vida pareceu voltar ao normal. Na frente da casa, a menina assistia aos meninos da rua que brincavam de jogar bolinha de gude. Algumas vezes, algum deles assobiava, o que provocava na menina um estranho calafrio, seu assobio fora assassinado. Lá dentro, a mãe costurava, colada ao rádio que cantava. A menina, antes alegre e saltitante, agora envelhecida e solitária, não sabia, mas sua infância chegara ao fim. Ela invejava a inocência da mãe.      


                                                                                               

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