Era para ser um dia feliz! Tinha
tudo para ser! A menina saiu de casa saltitante de alegria como era seu
costume. De mãos dadas com a empregada, caminhava no calor gostoso do meio da
tarde. Iam ao armazém do outro lado da pracinha para comprar açúcar e pó de
café. A mãe ficara costurando ao lado do rádio e cantava, perdida em seus
devaneios. A empregada tomara como séria obrigação ensinar a menina a assobiar.
E naquele dia nada havia de mais importante no mundo do que essa tarefa. A menina
juntava os lábios fazendo um biquinho, seguindo à risca tudo o que a empregada
ensinava. O armazém era um pouco de tudo. Vendia mantimentos, agasalhos,
botinas e também servia aguardente para os homens rudes, da cidade e do campo.
A menina, curiosa, assistia a tudo, ávida por novidades. Os homens, já bêbados
e quase inconscientes, falavam palavrões, gritavam, guinchavam. A menina,
tímida, não tentara mais assobiar e se escondera atrás da empregada.
Mas
naquela tarde, algo diferente acontecia. Todos gritavam alto, muito alto, e se
amontoavam, se acotovelavam para assistir a um espetáculo dantesco – uma
ratazana queimava encharcada de gasolina e acendida feito uma tocha viva!
Ninguém queria perder o triste espetáculo, todos disputavam um lugar para
melhor acompanhar a cena indecorosa e vil. Gritavam impropérios, batiam palmas
e assobiavam forte como se estivessem em um estádio de futebol onde dois times
brigavam pela melhor classificação. Sim, era como uma arena, daquelas em que as
pessoas, contagiadas pelo delírio da turba furiosa, batiam palmas e berravam
enquanto assistiam aos mártires serem estraçalhados e comidos vivos pelos leões
famintos. A ratazana, atazanada de dor e ódio, guinchava mais alto que todos, rodopiava
em piruetas fantásticas, procurando inutilmente fugir do fogo que, aos poucos,
a consumia inteira.
A
menina quedara estática, fechara os olhos e tremia, tremia toda, invadida por
uma dor enorme, diante da cena absurda e cruel. Agarrava as mãos da empregada
com toda a força e a puxava para ir embora, já chorando de medo, de raiva, de
horror. Temia que a ratazana ou algum dos homens a alcançasse. Ela só queria
assobiar, comprar açúcar e pó de café, ela só queria viver sua infância
inocente, agora já maculada por aquele acontecimento ignominioso. A empregada,
já mais maltratada pela vida e mais conhecedora das crueldades das pessoas, era
movida a ficar, a compartilhar aquela loucura generalizada, sentia-se excitada
e tomada pelo frenesi. É verdade que tinha pena da ratazana, mas não tinha sido
sua culpa, já estava feito, só restava observar. Sabia que era errado, mas até
sentia certo prazer com a cena, pura miséria humana.
A
balbúrdia chegava ao auge! Os homens endemoninhados, qual fugidos do inferno
sem destino e sem alma, davam vazão a todos seus instintos mais bestiais.
Elevavam as garrafas de aguardente para o alto e as emborcavam na garganta,
divertindo-se com a proeza. O líquido caía em suas faces com barbas hirsutas,
derramava-se pelos cantos das bocas que eles escancaravam em gargalhadas
indecentes, mostrando gengivas disformes e dentes podres. Quando não havia mais
líquido algum, os demônios arremessavam as garrafas no bicho que, finalmente,
já dava sinais de esgotamento em sua terrível agonia, diante de seu iminente fim.
Já não guinchava mais, logo estava reduzida a um monte de carvão mal cheiroso.
O brutal espetáculo terminara. Os homens loucos, decepcionados pelo fim de sua
diversão pecaminosa, entraram no armazém.
A
menina voltou chorando para casa, chorava alto, sentia uma dor incontrolável,
um medo da vida. Correu para os braços da mãe, que ouvia, atônita o relato da
empregada. Por muitas noites a menina teve pesadelos, sonhava com a ratazana em
chamas, com os homens horrendos, com seus olhos injetados pelo sangue da bebida
e do desvario. Depois de muito tempo, a vida pareceu voltar ao normal. Na
frente da casa, a menina assistia aos meninos da rua que brincavam de jogar
bolinha de gude. Algumas vezes, algum deles assobiava, o que provocava na
menina um estranho calafrio, seu assobio fora assassinado. Lá dentro, a mãe
costurava, colada ao rádio que cantava. A menina, antes alegre e saltitante,
agora envelhecida e solitária, não sabia, mas sua infância chegara ao fim. Ela
invejava a inocência da mãe.
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