Quando
leio um livro, guardo o hábito de grifar, às vezes até com caneta as passagens
que mais me encantam e anotar o número dessas páginas ao final. Aí, quando eu
folheio meus livros preferidos e procuro pelos tais parágrafos que me chamaram
a atenção, eu me encanto novamente, cada vez mais encantada que a última. Pois
bem, foi assim que não só verifiquei as passagens preferidas como li de novo
“As pequenas memórias” de Saramago.
Um
relato em questão me tocou profundamente: ainda bem menino, Saramago subia ao
Chiado acompanhado da mãe e da tia e, encantado com os balões coloridos que um
homem vendia, pediu à mãe que lhe comprasse um. Este era seu primeiro balão em seus
seis ou sete anos. Mais adiante, segurando o cordão e se sentindo importante e
feliz como se conduzisse o universo inteiro pelos ares, ouviu alguém que se ria
dele em suas costas. O menino olhou para trás e viu que o balão havia se
esvaziado e que ele, sem se dar conta, arrastava pelo chão de barro uma coisa
suja, enrugada e informe, e tudo isso sob a caçoada dos dois homens que vinham
atrás. Naquele momento ele se sentiu como o mais ridículo dos espécimes
humanos. Nem sequer chorou. Deixou cair o cordão e agarrou-se aos braços da mãe
como se fosse uma tábua de salvação e continuou a andar. Para ele, aquela coisa
suja, enrugada e informe era “realmente o mundo”, palavras dele. Aqui
costumamos dizer que era a cara do mundo.
Evidentemente
que Saramago superou esta humilhação provocada pela covardia de dois adultos e
como vingança nos presenteou com a delicadeza do mundo belo, sensível e
maravilhoso de suas obras. Como é salutar realizar uma vingança boa!
Agora
relato outro episódio de criança, porém que se passou com a escritora deste
texto. Tinha eu por volta de sete ou oito anos e frequentava as aulas de
catequese na antiga Sede em Pedralva, construção que os mais velhos devem se
lembrar. Eu era uma menina inquieta e chata que às vezes dava trabalho para as
professoras. Lembro-me de fazer brincadeiras e atrapalhar a aula da professora
moreninha e delicada que tentava me refrear com doçura. As outras crianças,
contaminadas pelo meu mau comportamento, riam e me incentivavam a continuar com
as peraltices. Cheguei ao cúmulo de sair de minha carteira e ocupar a cadeira
da professora que continuava a aula virada de costas para mim. Comecei a
balançar na cadeira para frente e para trás fazendo macaquices até que não deu
outra: caí com a cadeira e tudo de costas no chão. Tonta, ainda sem entender o
que havia acontecido comigo, comecei a chorar ouvindo a turma que gargalhava a
não mais poder. Eu mereci, bem feito pra mim. Mas a professora, nossa, que
lição! Como assim? Quem falou? Ficou brava com a turma e me socorreu
gentilmente, com muito cuidado, com muito amor. Ela me levantou, me abraçou e
me acolheu. Eu fiquei com o rosto enterrado nos braços chorando mais pela
humilhação do que pela dor. A aula acabou e eu continuei sem poder encarar
ninguém. A professora não desistiu de mim. Continuou lá comigo, falando
palavras de conforto que só faziam com que meus olhos fabricassem mais e mais
lágrimas. Eu sofria pela humilhação do tombo, mas igualmente por uma sensação
incômoda de algo me faltava, o castigo merecido que a professora não me
impingiu. Ela sabia e eu também que já estava por mim mesma castigada. E esta
compreensão doía muito. Era confuso, mas entendi: “No pain no gain”.
Fui
para a casa e tratei de despistar para minha mãe não perceber meus olhos
vermelhos e inchados de tanto chorar. Contar para ela era algo impensável, fora
de questão, pois tenho certeza de que me puxaria as orelhas e me golpearia com
uma saraivada de chineladas merecidas no lugar apropriado! Eu já havia
aprendido a duras penas como deveria me comportar nas aulas. Esta lembrança me
acompanhou por quase seis décadas (descobri que é bem mais suave falar
“décadas” do que “tantos anos”). A professora me mostrou que o mundo poderia
ser, além daquela “coisa suja, enrugada e informe”, uma delicada experiência de
aprendizado. Quem seria ela? Por onde andará? Será que se lembra? Gostaria que
lesse esta crônica. Fica aqui minha homenagem a ela e às professoras que nos
ensinam bem mais do que os conhecimentos de português e matemática e outras
infindáveis disciplinas.
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