quarta-feira, 12 de outubro de 2022

CARTA A GRACILIANO RAMOS


Participei de um concurso e fui selecionada entre os finalistas. Ocorre que não percebi no regulamento que só poderiam participar os candidatos que não tivessem livros publicados. Fui desclassificada, muito justo. O tema era escrever uma carta para um escritor famoso, vivo ou falecido, que fosse o autor de uma obra que nos tivesse emocionado de tal forma que passasse a ser um de nossos livros prediletos. Aqui vai minha carta:

Quando li seu livro SÃO BERNARDO, senti minha sensibilidade subir às alturas, tocada no mais profundo do meu ser. Fui lançada acima dos ares, dos mares, vislumbrei toda a Terra, todos os mares e montanhas. Entrei dentro dos mais recônditos cantos do meu interior, fisicamente e espiritualmente, conheci um tanto de mim que até então desconhecia. Fiquei mexida, descobri que é possível um escritor transformar a vida de uma pessoa escrevendo um livro.

Lendo SÃO BERNARDO, senti que eu era um pouco o protagonista PAULO HONÓRIO e um pouco os que rejeitaram a empreitada de publicar um livro autêntico, cheio de verdades que ninguém suporta. Entendi que o livro de nossa vida contada exatamente como foi e como é, é difícil, pois uma coisa é viver e outra é ler o que se viveu. Ninguém suporta as verdades incontestáveis, não, ninguém suporta.

Entendi que se uma pessoa escolheu escrever, ela já não poderá ser escondida. Não há como escrever escolhendo palavras porque as palavras, as frases, os parágrafos e toda a história já estão dentro do autor, já correm em suas veias, em seu respirar, em suas lágrimas, em seus sonhos, em suas muitas tristezas e poucas alegrias. Um autor sempre contará a história de sua vida, de um jeito ou de outro, senão ela toda, talvez pedaços. Um autor sempre escolherá personagens para fazer seu papel, porém sempre será ele, o autor.

Olha, eu amei o PAULO HONÓRIO. Amei sua história triste e real. Amei suas impossibilidades, amei sua ternura para sempre massacrada, amei sua simploriedade, sua coragem, sua solidão, seu ser do jeito que era, do jeito que o fizeram, do jeito que a vida o tratou e o obrigou a ser. Havia ternura dentro dele, ternura que fora destruída, mas que ainda assim permanecia tentando escapar pelos poros. A brutalidade encobria a ternura. E ele bem que tentou. Ao fim, PAULO HONÓRIO conclui que é “um homem incapaz de imaginação, e as coisas boas que mencionara vinham destacadas, nunca se juntando para formar um ser completo.”  

“Fiz aquilo porque achei que devia fazer aquilo. E não estou habituado a justificar-me, está ouvindo?” Caro Graciliano, essa frase de Paulo Honório fez-me lembrar de meu pai, que era um homem pacato, bom, educado ao extremo. Certa vez, ele perdeu as estribeiras quando instigado e se mostrou como era por dentro, pôs para fora o verdadeiro, o escondido, o que fora ensinado a ser assim para agradar a todos. Até que enfim uma rebeldia se mostrava. E ele disse sua verdade, “fiz porque fiz e pronto”.

Agora, Graciliano, entendo suas palavras quando disse em uma carta para sua irmã que escrever é sangue, é carne, e que além disso, não há nada. E mais ainda, que nossas personagens são pedaços de nós mesmos, e que só podemos expor o que somos. É a grande verdade.  

Obrigada Graciliano por escrever um livro tão humano, tão verdadeiro porque não é uma história de bandidos e mocinhos, é uma história de gente, é uma história de vida real, de vida como ela é, para uns, fácil, para outros muito difícil. No final todos se igualam mesmo.

Obrigada pela sinceridade de PAULO HONÓRIO, que ao ter a primeira discussão com Madalena, oito dias depois do casamento, confessa para si mesmo: “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste”. E em outra passagem: “Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar”.

Obrigada pela beleza dessas confissões, pela minha sensibilidade exacerbada ser plenamente satisfeita por este livro. Assim é que os livros deveriam ser. Mais do que a psicanálise, os livros deveriam ser capazes de transformar a vida da gente.

A você, GRACILIANO RAMOS, minha gratidão infinita.  

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