Sempre
encontro com uma mulher que mora no meu prédio, um caixotão grandão dividido em
inúmeras caixas (nome dado ao nosso prédio por um vizinho) onde moram inúmeras
pessoas. Vez por outra, nós, os moradores do caixotão, nos encontramos nos
elevadores onde levantamos os olhos dos celulares para dar bom dia, resquício
dos velhos tempos em que as pessoas costumavam se dirigir umas às outras.
Ficamos apenas no bom dia, boa tarde, vai chover? Frio, não? Sorrimos e
continuamos nossa vida, centrados em nós mesmos. Minha caixa, digo, meu
apartamento é bem no alto e quando pela manhã olho para a cidade vislumbro as milenares
montanhas que tanto amo e que me cercam. Elas continuam lá, quietas, imóveis, testemunhas
silenciosas de tantas histórias que já se passaram neste vale. Hoje estavam
magníficas, deslumbrantes, mas são as mesmas de ontem, eu é que estou
diferente, ainda vou descobrir mais sobre mim. Quando vejo aquelas montanhas que
me chamam sinto um pouco de angústia porque já faz tempo que quero morar no
campo, mais perto delas. Sim, definitivamente quero ir para o campo, mas ainda
não estou preparada para a ausência de sinal, o sinal potente da internet, o
sinal que faz a smart TV brilhar com seus filmes e seriados futurísticos que tanto
me encantam. Aí penso, mas ainda existem os livros, os clássicos, os
contemporâneos, os poemas que me alimentam e me inspiram a escrever meus contos
e crônicas. Esta escolha entre campo e cidade é difícil para mim. Sei que este
conflito parece estranho, pois o campo seria ideal para quem gosta de escrever.
É fato, mas nem sempre. Digo isto porque o cotidiano, as pessoas que moram em
prédios e andam apressadamente ainda me atraem mais do que o ambiente bucólico.
Gosto de escrever sobre este cotidiano que nos surpreende, sobre os sentimentos
contraditórios das pessoas que nunca serão totalmente boas nem totalmente más.
Exatamente, o contraditório da vida. Então insisto que sou urbana, que gosto da
tecnologia, do burburinho. Sou urbana, definitivamente urbana, mas definitivamente
quero ir para o campo, um dia quem sabe.
Bem,
voltemos à moça em questão ou a mulher que mora no meu prédio. Quando nos
encontramos no elevador, eterno salão de visitas onde nós, moradores, proferimos
as mesmas frases, ela sempre me pergunta algo como se sei por que tal canal da
TV está fora do ar, aí respondo que não uso a parabólica, recomendo que
pergunte aos porteiros, sim aos porteiros que de tudo sabem, que conhecem cada
morador, que conhecem nossos costumes mais do que nós mesmos. Tenho o maior
respeito por eles, mas a verdade é que sabem mesmo de tudo, de quem nos visita,
sabem de nossas contas que chegam e eles colocam nos escaninhos, sabem que dia
fazemos compras, se compramos vinhos ou cervejas, se nosso carro foi arranhado.
Os porteiros conhecem nossos segredos, assim como os mordomos conhecem os
segredos da casa nobre onde trabalham.
Mais
uma vez, voltemos à moça. Então, ela me pergunta sobre o canal da TV, também
comenta que o feijão está caro, que vai à feira porque é mais barato. Enfim,
ela conversa bastante para quem se encontra no elevador, pois a maioria nada
conversa, sorri timidamente. Ah, esqueci-me de falar dos que são mais
extrovertidos. Estes riem alto, fazem alguma piada e são gentis, abrem a porta
para os que vão sair antes. Também há os que não falam, não sorriem, nada de
bom dia nem boa tarde. Cada um é cada um. Assisto a tudo isso porque faço as
viagens mais longas, moro na última caixa. Há pessoas que só vejo com espaço de
meses, e aí nos estranhamos, dizemos sempre: nem parece que moramos no mesmo
prédio! Nunca nos visitamos. Isso me incomoda, nada sabemos das pessoas que são
nossos vizinhos, se precisam de algo, que problemas têm. Certa vez, há anos,
fizemos uma novena de Páscoa no salão de festas. Só mulheres porque os homens
não são de novenas. Interrompia minha rotina, mas eu sentia uma secreta
felicidade de estar com minhas vizinhas. Líamos algumas passagens dos evangelhos,
de acordo com o dia da novena. Alguma vizinha bem mais velha levava algum tempo
procurando lentamente pelos óculos escondidos em algum canto da bolsa e lia com
dificuldade. Pacientemente como devemos e queremos ser, esperávamos que ela
terminasse, pois se não fôssemos pacientes em vão seria qualquer leitura dos
evangelhos. Então comentávamos sobre a passagem lida, filosofávamos, algumas
delas falavam de si, de suas perdas, de suas saudades. Ficávamos sensibilizadas,
aquilo nos fazia vivificar a solidariedade esquecida. Ao final, havia troca de
receitas, sorrisos mais plenos. Era um encontro. Nosso encontro. Encontro real
de pessoas, como se morássemos em casas na mesma rua e não em caixas.
E
a moça? Bem, vamos lá. A moça que insiste em conversar comigo. Respondo sempre
do jeito mais amável que encontro. Mas uma coisa curiosa me chama a atenção.
Quando saímos do prédio, ela não me conhece mais. Se vamos para o mesmo lado,
ela adianta o passo ou o atrasa para não caminharmos juntas, ou talvez nem faça
isso, e tudo não passe de uma impressão minha, coisa de gente desconfiada. Não
estou julgando, só constatando. Se nos encontramos na cidade, no centro, até
próximo ao prédio, eu já me preparo para sorrir e trocar alguma frase, mas ela
não me olha, parece não me conhecer. Quando acontece de estarmos esperando o
elevador chegar, aí ela já me reconhece. A princípio, fiquei meio aborrecida,
afinal que pessoa é esta que tem hora que conhece e hora que não conhece?
Depois me lembrei do julgamento apressado que fazemos sobre as pessoas. Que sei
eu dela? Nada. E que sei eu de mim? Huumm, talvez menos ainda. Então, nos
conhecemos no elevador e não nos conhecemos na rua. Que assim seja. As pessoas
são um mistério, e diante dos mistérios, devemos nos curvar em reverência. E depois,
o que seria de nós se não existissem os mistérios? Desde os mais simples até os
mais avassaladores mistérios? Precisamos também do obscuro, já dizia G. Rosa.
Decidi aceitar a moça do jeito que ela é e tomara que ela tenha me aceitado do
jeito que sou.
Mas
decididamente ainda vou para o campo, mesmo sendo definitivamente urbana.
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