Era um dia do passado. Estávamos em
casa, em família. Eu sabia o que era uma família, era filha do meu pai e de
minha mãe, irmã dos meus irmãos, neta dos meus avós. Sentávamos juntos para
almoçar e jantar, tudo muito simples, é verdade, mas estávamos sempre juntos, éramos
uma família. Minha mãe me ensinava a rezar, a fazer a tarefa da escola. Bateram
à porta. Fomos abrir. Era uma mulher oferecendo os filhos para quem quisesse
ficar com eles. Ela já não podia, era pobre, não dava conta de criar todos.
Eram duas mulheres, vai ver que eram irmãs. As crianças olhavam para nós sem
compreender o que se passava. Estavam todas até bem vestidinhas e limpinhas. Minha
mãe ficou condoída, quis ajudar, indagou mais delas, quem eram, de onde vinham,
é que
filho não é para se oferecer assim
dessa maneira, não se pode desfazer de filho assim. Elas diziam que não
tinham outro jeito, mostravam as crianças, diziam que eram boazinhas, que não
davam trabalho. As crianças continuavam olhando pra nós, e até olhavam de um
jeito como se quisessem ficar, levantando o pescoço para ver o que havia lá
para dentro de casa, curiosas como são as crianças, parecia que não sofriam.
Ninguém chorava, nem as crianças, nem as mulheres. As mulheres insistiram, diziam,
olha este, minha mãe retrucava, não, não, e elas, e esta? Minha mãe balançava a cabeça, desanimada. Perguntaram se
minha mãe sabia quem pudesse ficar com eles e ela respondeu, não, não sei, isto é, ninguém fica assim com
filhos de outras pessoas, as crianças não podem ser separadas, são irmãos, é
preciso encontrar outro jeito de resolver a situação. As mulheres saíram
para a rua, as crianças saltitantes atrás, umas brincando com as outras como se
fosse a coisa mais natural do mundo serem oferecidas para outras pessoas. Quando
eu era menina fiquei separada de minha família por algum tempo. Tive de ficar
na casa da minha tia, senti um desamparo incompreensível para mim, queria minha
mãe, queria meus irmãos. Também quando minha avó ia embora, do ponto do ônibus até
nossa casa, eu e minha irmã subíamos a rua chorando alto como se nunca mais
fôssemos ver nossa avó querida.
Certa vez, fiquei perdida em Aparecida
do Norte. Estava com minha mãe e minha avó. E sabe como é, aquela coisa de um
pensa que a criança está com o outro, o outro pensa que a criança está com o
um, e é um desespero só. Acontece muito onde há multidão. Eu era muito pequena,
menos de seis anos. Lembro-me vagamente de olhar para o alto, para as pessoas,
mas lembro-me com certeza de que não senti medo, não sei o que sentia, não
entendia o que estava acontecendo. Uma delas me encontrou, logo veio a outra,
as duas com o coração disparado, dando graças a Deus. Aí eu penso, e se nunca
mais eu fosse encontrada por elas, e se outras pessoas tivessem me levado. Quem
seria eu?
Que coisa! As crianças oferecidas para
minha mãe pareciam não sofrer, só pareciam.
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