domingo, 17 de julho de 2016

O QUE TERÍAMOS SIDO SE NÃO FÔSSEMOS O QUE SOMOS?




            Às vezes me pego pensando o que eu teria sido se não tivesse sido bancária. Trabalhar em banco não é vocação, não vale. Digo isto sem querer desmerecer o emprego que me deu o sustento. É que falo daquilo que está dentro da gente em forma de desejo, de sonhos a serem realizados. Geralmente quando perguntamos para as crianças: o que você quer ser quando crescer? Muitas se espelham no exemplo dos pais, tal como “quero ser médico como meu pai” ou “professora como minha mãe”. Às vezes isso é cumprido à risca, pai médico, filho médico, muitas vezes não, considerando que duas pessoas no universo inteiro não são iguais, trazem desejos e anseios bem diferentes.
Já mãe atriz, filha atriz, mãe modelo, filha modelo - pode dar certo, mas pode ser um desastre, uma vez que a filha não tem o mesmo talento e brilho da mãe, até pode ter, mas serão sempre diferentes. E ter portas abertas não garante o caminho de ninguém, cada um tem que achar o seu, cada um é que tem que encontrar e lapidar seu próprio diamante.
Fiquei imaginando o que poderiam ter sido as pessoas próximas a mim. Minha mãe foi uma dona de casa, mas no fundo não era o que ela desejava. Se tivesse nascido 30 anos depois talvez escolhesse outro caminho. Ela tinha uma grande ânsia de vida que ia muito além de ser mulher rainha do lar. Explico melhor: é claro que ela queria um amor, queria se casar, queria ter filhos porque de maneira geral todas as mulheres de todas as épocas querem, mas na época antiga ser dona de casa era quase a única opção para as mulheres. Muitas tinham um desejo pulsando dentro de seu coração, algumas poucas rompiam com tudo e alçavam voo rumo ao seu desejo, outras sabiam disso, mas conformavam-se, outras nem souberam ou souberam, mas foram felizes, já outras viveram até o fim da vida sem descobrir o que poderiam ter sido, qual sonho sua alma abrigava. 
            Voltando à minha mãe, ela brincava sempre dizendo que se tivesse tido a chance de estudar, teria estudado leis, enfatizando que achava uma beleza conhecer as leis, ou seja, teria encarado a carreira estudando Direito. Mas conhecendo-a como conheci, sei que ela não teria sido uma simples advogada, bem provável que se revelasse uma implacável juíza, era da sua natureza. Indo sempre pela trilha do desejo, observo também como era meu pai e concluo que ser um funcionário público estava a anos-luz do que realmente gostava de fazer. Sem dúvida, teria sido um intrépido caçador, um desbravador de savanas, já que adorava as caçadas, seus cães perdigueiros, suas aventuras pelo mato. Como o desejo é o que nos move, quem sabe ele teria feito até um safári na África. Eu me lembro de quando ele voltava suado das caçadas trazendo um jeito diferente no olhar, uma realização concretizada.
Meu avô, pai de minha mãe, ah este teria sido um astrônomo ou cientista, pois era apaixonado pelas estrelas e galáxias. Tinha verdadeira fascinação pelo céu. Vivia olhando para o céu estrelado, sabia os nomes todos e gostava de ler a respeito. Pois então, foi no início do século XX, precisamente em maio de 1910, que o cometa Halley foi visto perfeitamente em toda a sua majestade. Meu avô que sabia de tudo, que lia jornal e ouvia rádio se dirigiu para o alto de um monte e lá ficou na hora marcada de olho no céu. Voltou para casa pisando no ar, mais fascinado que Moisés quando recebeu as tábuas da lei. Parecia até que o cometa tinha borrifado vapor d’água que brilhava na cauda bem direto no rosto dele, tamanho o brilho que trazia na cara ao falar sobre o cometa. E dizia assim, quando o cometa voltar eu não estarei mais aqui, mas vocês sim. É verdade, todos ficamos de olho no céu em 1986, mas ele não veio tão majestoso como em 1910. Ficamos decepcionados. Meu avô foi carroceiro, canjiqueiro, um pouco de tudo, menos astrônomo.
Eu, quando menina, meti na cabeça que queria ser bailarina clássica. Nos primeiros tempos da televisão em branco e preto, eu seguia à risca umas aulas de balé.  Morávamos e moramos no interior, não tínhamos condição financeira e minha carreira de bailarina naufragou antes mesmo de ter começado. Talvez se tivesse nascido 30 anos depois (tal como minha mãe), talvez na Rússia, minha carreira de bailarina ou de ginasta estaria garantida. Em minha cidade, havia uma garota que era a baliza que saía com a banda e para mim, ser uma baliza era a felicidade suprema. Suas roupas brilhantes, os botões dourados, as franjinhas brilhando nos ombros, o bastão girando nos dedos e os movimentos graciosos em piruetas perfeitas eram meu sonho. Em casa, arrumei uma varinha e rapidamente aprendi a girá-la com perfeição entre meus dedos. Também aprendi a virar meu corpo para trás descendo as mãos na parede e para horror e desespero de minha mãe, eu saía andando pela casa como uma aranha desengonçada.
 Certa vez fizemos um circo improvisado em nosso quintal. Eu vestia um maiô vermelho e brilhava no trapézio feito grosseiramente com cordas, taboas e ferros. Balançava de uma árvore para outra presa só com os joelhos e de cabeça para baixo. Meus irmãos também aprenderam proezas incríveis e entre abacateiros, laranjeiras e mangueiras, fazíamos nossa brilhante apresentação para a plateia composta pela família, alguns parentes e vizinhos acomodados em cadeiras cambetas no chão de terra. Mas nossos mais fervorosos e fiéis espectadores eram os cães do cercado ganindo aplausos. Quem sabe poderíamos ter sido uma trupe de artistas do tipo do Circo do Soleil: “Os fantásticos Irmãos Rezende em suas inacreditáveis apresentações de malabarismo”.   
Depois de me livrar do banco, fui terminar meu curso de Letras. Aí sim me deliciei com a literatura e descobri um caminho, algo que pulsava em minha alma sem que eu soubesse. Eu já escrevia, mas conheci as fontes, os clássicos, e mais do que isso, na escola representávamos as tragédias gregas, fui Édipo Rei, Eros, e também a sofrida Inês de Castro. Até Fernando Pessoa e Walt Whitman fui, revelei-me uma atriz de qualidades excepcionais, que o diga meu amigo Fernando Pimentel, ator, produtor e diretor de teatro que me ensaiou para a peça Inês de Castro. Eu sentia uma secreta e plena felicidade fazendo essas estripulias depois de velha. Então, quem diria hem? Meu destino teria sido o palco (segundo minha irmã minha vocação era aparecer mesmo de qualquer maneira, com palco ou sem palco!). Eu me lembro de como foi nossa última semana de Letras, tudo coincidindo com a formatura logo depois. Eu, sem tempo algum, dei as costas para minha casa e vivia na faculdade. Quando tudo acabou, de volta ao lar, estava separando pilhas acumuladas de roupas para lavar e passar quando meu marido carinhoso me abraçou e disse: finalmente! do palco para o tanque.   
Termino com uma redação de minha irmã quando estava no segundo ano primário. A professora, encantada, telefonou para minha mãe para ler para ela o que Agueda tinha escrito: eu quero ser uma aeromoça, mas não uma moça aérea. Fez o maior sucesso. Ela não foi nem aeromoça, nem moça aérea. Foi bancária e eu também, talvez seguindo seus passos, já que sempre fui sua maior admiradora e puxa-saco definitivamente declarada e escancarada. Seu dom é a música, teria sido uma pianista (ela até comprou um piano) e também toca teclado e canta divinamente.
Enfim, nenhum de nós se tornou oficialmente aquilo que nos faria mais plenos, nem meus pais, nem eu, nem meus irmãos, mas o dom guardado acaba por se manifestar de uma forma ou de outra. Tal qual a luz do sol que se embrenha por qualquer fresta de uma casa fechada e a inunda tudo com um brilho intenso, o tesouro que existe dentro de nós também se derrama generosamente, às vezes em forma de um passatempo, de uma brincadeira ou mesmo em sonhos.      

Que bom seria se todos pudessem descobrir e seguir os desejos de seu coração. Certamente nascemos com os mais variados dons, e se bem aproveitados, seríamos mais felizes e mais realizados. Há coisas que não podem mais ser revertidas, mas outras quem sabe. Nunca é tarde, mas bailarina ou trapezista nesta altura da vida não dá não, está fora de questão. Escrever ainda é meu maior tesão.   

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