sexta-feira, 11 de março de 2016

A cor da morte





D. Áurea, D. Áurea, seu Amâncio morreu! Como morreu, criatura? Está louca? Respira fundo, minha filha, senão você é que vai morrer já, já. Me conta, antes senta aqui um pouco, calma, calma, toma um pouco d’água, devagar.  A moça simples arfava o peito e se abanava com a mão. Mal tomou um gole e já falava atropeladamente. Foi agorinha, ele tava bom, até atendeu de manhã, aí foi pra casa pra almoçar, falaram que nem na mesa sentou, no meio da cozinha teve um ataque e caiu fazendo um estrondo. D. Áurea persignou-se e tratou de procurar ela uma cadeira porque começou a sentir um aperto no peito, uma falta de ar. Tá cheio de gente lá, já chamaram o médico, mas acho que não tem jeito não, ele morreu mesmo. D. Áurea suspirou fundo e começou a empilhar os moldes, os tecidos, as tesouras e linhas porque trabalhar seria impossível. Estava de luto.
Como morreu? Como? As pessoas estão vivas e de repente morrem. Mergulhada nas mais elevadas filosofias, já pensava nos instrumentos de dentista que haviam ficado em cima da mesinha e que não seriam mais usados pelo falecido. Pensou no franguinho delicioso que a mulher sabia preparar e que Seu Amâncio nunca mais comeria. Pensou na viúva, sua amiga, pensou no susto que teria sido aquela morte bruta e abrupta. Desde que fizera sessenta anos, D. Áurea passou a pensar mais na morte, mas nunca se acostumava com ela, como toda a humanidade, certamente. E quem é que se acostuma? Só se a gente morresse mais de uma vez, até cansar. Aí sim, talvez fosse possível se acostumar. Ficou olhando para a Tonha, sua empregada boa e simples que fazia o café e balançava a cabeça a todo instante, como quem não se conforma com alguma coisa. De vez em quando, Tonha falava sozinha, não sabia que também sabia filosofar. Dizia, é, a morte só existe para quem fica. Depois soltava outra frase, vai quem vai, feijão no fogo pra quem fica.
Mais de tardezinha, D. Áurea vestiu-se de preto e foi para a casa da viúva onde Seu Amâncio era velado. Primeiro procurou pela amiga, a viúva, que chorava sem parar. Molhara já tantos lenços e sempre aparecia outro que alguém providenciava, mais outro, e as lágrimas chegavam profusas para aliviar a dor. Não acredito, D. Áurea, não acredito, como é que pode? Levantou igualzinho faz todos os dias, não clamou de nada, de nenhuma dor, rimos, falamos da chuva que agora deu trégua, falamos da mangueira que já tem manga, de visitar minha mãe lá em São Paulo. E a viúva falava e chorava.
Depois de consolar a amiga, D. Áurea chegou perto do caixão, com respeito, devagar. Lá estava o Seu Amâncio, agora morto. Mas não parecia um morto. Não tinha aquela cor da morte, aquela cor de quando a vida vai embora. Ele estava só dormindo, podia jurar que sim. Só que não respirava, isso não. D. Áurea ficou sentada lá perto e não tirava o olho do falecido porque tinha certeza de que morto ele não estava. Isso não é cor de morto, este homem está vivo, deve ter tido um daqueles ataques de nome complicado, aquele estado em que a pessoa fica impossibilitada de respirar ou piscar, como se fosse um coma.
E mais tarde, D. Áurea voltou para passar algumas horas da noite no velório. O homem estava do mesmo jeito, sem cor nem jeito de morto. Ela tentou abordar a questão com uma conhecida, mas não obteve sucesso. Imagine! Disse a mulher, claro que está morto, não respira! Ora, que ideia, D. Áurea! E de manhãzinha foi feito o enterro. De noite, todo mundo estava exausto, todos foram dormir. D. Áurea também. Fez suas orações, rezou pelo falecido e dormiu. Sonhou que estava enterrada viva, sentia falta de ar. Acordou ansiosa, puxando o fôlego. Lembrou-se do amigo dentista. Levou um tempo para deitar a cabeça no travesseiro. O sono chegava inclemente. D. Áurea lutava para permanecer acordada com medo de sonhar outra vez, e apenas um pensamento ecoava em sua mente ... aquela cor não era de morte 

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