Ricas elas não eram, mas eram um bocadinho
melhor do que a família da Maria da Graça, faz de conta que era este o nome.
Então, existia sempre aquela concorrência, as primas de cá e as primas de lá.
Mas como se não bastasse, o pai das primas de lá ganhou um bom dinheiro na
loteria, nada escandaloso, mas era um dinheirinho bom. E as primas vieram
passear na cidade para comprar sapatos novos e ir ao cinema porque lá não tinha
nada disso. E quem foi acompanhar? A Maria da Graça, sempre olhando comprido
para a carteira das primas. E levou numa loja, levou em outra, foi obrigada assistir
a um movimento sem fim de tira esse par, experimenta o outro, sandália, sapato,
e à noite, o cinema. Maria da Graça sentia na pele uma coisa assim, assim de
injusto, uma indignação que nem ela saberia explicar, muito menos entender.
Pois bem, no cinema, depois de comprar
muita pipoca, chocolates e balas, sentaram-se felizes para ver o filme. Maria
da Graça, não tão feliz assim. E quase na hora do filme começar, uma das primas
exclamou: gente do céu! Perdi dinheiro, acho que deixei cair no chão porque ainda
contei quando chegamos aqui. E nesse momento a luz apagou. E foram as três
apalpando o chão para achar o dinheiro. Maria da Graça achou, sentiu na mão o
contato gostoso da nota de cem e foi aí que bateu a tentação. Pegava e ficava
com ele, que coisa também! Saiu com elas, ajudou, entrou e saiu de loja a tarde
toda e nem um trocadinho! Até o bilhete do cinema ela teve que pedir para o
pai. E naquela escuridão, ninguém viu. Ela pôs a nota dentro do sutiã e
continuou procurando para não levantar suspeita. Desistiram, vai ver que a nota
estava debaixo da poltrona da frente. Depois do filme, as três procuraram outra
vez, olharam aqui e ali e, é claro que nada. Maria da Graça sentia o coração
batendo forte dentro do peito, tinha medo que as duas ouvissem. Mas não
hesitou, ficou com o dinheiro e sentiu mesmo uma satisfação justa.
Pois bem, a vida passou. Quando já
estava com bastante idade, numa tarde de primeira sexta-feira do mês, Maria da
Graça lembrou-se do episódio e como estava na fila da confissão, decidiu contar
para o padre. Durante tantos anos não pensara naquilo, mas assim, sem mais nem
menos, a lembrança veio acusar. Era mocinha naquela época, cheia de vaidade e
de vontade de ter isso e aquilo e duas primas esnobando riqueza, mas de
qualquer forma, foi errado. Pecado é pecado.
O padre ouviu atentamente, firmou a
vista para perceber melhor a silhueta da penitente. Minha filha, mas faz quantos anos isso? Quarenta e cinco anos?
Pensou consigo, já prescreveu, mas
não falou. E Maria da Graça, apavorada, pediu, padre, pelo amor de Deus, qualquer penitência, menos contar para elas,
até porque uma delas já morreu e a outra tá muito doente. E o padre passou
a penitência: transpor para o dinheiro de hoje a quantia usurpada e fazer
doação para a Vila Vicentina, que está sempre precisando de mais trocados. Mais
dez padre-nossos, dez ave-marias e trinta missas diárias, sem interrupção. Mais
uma visita à prima sobrevivente, o que Maria da Graça fez com muito gosto. E
assim caminha a humanidade, pecadora, mas humana, demasiadamente humana, como
diria Nietzche.
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